Monday, August 22, 2005

«Sem saída»

Virada para a bancada de cozinha preparava o jantar quando o primeiro golpe a atingiu.
As palavras tinham-na atingido antes. Duras. Ofensivas. Como sempre.
- Hoje de novo não, pensou.
- Vou fazer o jantar, disse alto.
Refugiou-se na cozinha tentando adiar a agressão, que sabia inevitável.
Quando o golpe a atingiu no ombro gritou. Ele continuou. Como sempre.
Marcando-lhe o rosto. O corpo. Como sempre.
Marcas de tantos anos que eram só uma. Dores de tantos anos que eram só uma.

Ela levantou-se do chão. Acabou de fazer o jantar. Serviu-lho.
Como se nada tivesse acontecido.
Ele jantou.
Como se nada tivesse acontecido.
Ela esperou.
Arrumou a cozinha. Esperou.
Ele chamou-a. Não respondeu. Esperou.

Levantou a mesa. Lavou cuidadosamente a loiça.
Não tentou ocultar os vestígios dos comprimidos. Arrumou e limpou tudo cuidadosamente. Como sempre fazia.

Olhou as paredes imaculadas de silêncio. O corpo dele no chão. Atapetando o chão.
Vestiu o casaco.
Pousou cuidadosamente o que lhe restava de amor no móvel do hall de entrada. Junto às chaves.
Para que os filhos no dia seguinte encontrassem chaves e amor.
Saiu.
Olhos limpos. Isenta de culpa.

Respirou fundo a água e o escuro quando o corpo num salto atingiu o rio.

Por: Encandescente.

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