Wednesday, February 02, 2005

Excerto do Alvim

"Escrevi o teu nome em todas as paredes. À medida que avançaste pela Avenida da Liberdade, o teu ar de espanto foi aumentando até ao clímax absoluto que se deu no preciso instante em que viste, no cimo do céu, uma avioneta que transportava um pano enorme com a frase «I miss you baby!».
Como sempre, foi pouco para ti. Porque eu saibo-te a pouco, porque te saibo a nada, porque eu não existo, pronto. Não te vejo, mas sinto-te. Não estou contigo, mas tu estás aqui. Dentro de ti está tudo muito escuro, mas aqui deste lado, enquanto o sol da manhã me entra pela janela como se fosse uma brisa muito fresca, o tempo está claro.
O teu cheiro está sediado na minha alma. Não adianta disfarçar. Não vale a pena. Chorei tudo o que havia nos meus olhos, não existe mais nada aqui. Estou seco, como naqueles dias em que acordas com o deserto na boca.
Vivo todos os dias contigo, mas tu não. Vives sem mim e isso irrita-me. Ainda hoje não aceito isso. Castigo a toda a hora as minhas sobrancelhas por tua causa. Mas perdi a esperança. Toda. Estou fodido no cais do embarque, com o bilhete na mão, com toda a gente a olhar para mim e tu lá longe, com o teu motor, vestida de ferry-boat, em tons de laranja e preto. Sem sequer olhares para trás, sem teres atrasado deliberadamente a hora de partida, sem que tenhas feito algum esforço para queimar uns minutos, dando-me tempo de chegar. Eu sou esse que vês daí, do alto mar, de braços erguidos ao céu, a gritar o teu nome, como um louco, como alguém já sem vergonha de ser visto como tal. Quero lá saber.
Eu sou a ira, a mágoa em forma de homem. Tu és o barco que corre sem misericórdia, para o mesmo sítio de todos os dias. Eu sou esse mesmo que te perdeu no cais do embarque, tu és aquela que nunca me esperou. E mesmo assim, ainda hoje, ali ao lado da Praça do Comércio, finjo que vou comprar o jornal para saber as últimas, e olho para o infinito, na esperança de te ver um dia, sem pressa de partir.
Mas o teu vestido de ferro, não se inibe com as minhas lágrimas de aço. E a tua voz parece-me agora um sinal de partida, repetido, igual a todos os outros, monocórdico, como um sinal de interrompido de um telefone há muito cortado. E só agora percebi o que dizes e afinal era tão fácil. Dizes que és o que eu sempre soube. Um ferry-boat. Isso mesmo, um barco que parte à hora certa, com destino marcado, sem poder esperar por ninguém, sem nada que o impeça de partir."

Este excerto, é um dos mais "loucos" do livro do Fernando Alvim, "No dia em que fugimos tu não estavas em casa", todo o livro está carregado de sentimentos nobres, e talvez reais. Há partes em que dão para pensar profundamente. Para um comediante o livro está extremamente bom, que quem não conhecesse tamanha faceta do Alvim, diria que ele é um profissional da escrita. Exagero? Julgo que não. Adorei cada pasasgem deste livro, mas em especial esta. Talvez porque, de certa maneira, é uma das mais parecidas com alguma situação da minha vida. Aconselho a compra deste livro, e que o leiam, mas com olhos de alguém com vida, e não de um ser inanimado, que odeia viver.

2 comments:

Susana Nunes said...

Estou surpreendida. Não conhecia nem imaginava esta faceta do Alvim... E gostei. :)

Alexandre Carvalho said...

só uma nota: o alvim n é um comediante. o alvim é, no seu sentido lato, um comunicador. Lá porque ele é divertido ou tá na galhofa no seu trabalho, é com ele, tudo bem, eu tb gosto. Mas n é um comediante. Já trabalha na rádio(já nem sei em q rádio ele trabalha agr, já foram tantas...mas julgo q tá na Best Rock FM), televisão (óbvio, Sic Radical) e tb na imprensa escrita (ele faz parte da revista 365, q aconselho vivamente todos). É um tipo divertido, engraçado vá lá.. Não é um comediante. Comediante é o Herman ou o Camilo de Oliveira (mais uma vez, neste caso, comediante no seu sentido mais lato possível...), o Fernando Rocha ou o Jerry Seinfeld. Esses sim, comediantes. Não q eu queira fazer um grande forrobó deste assunto, apenas apetecia-me escrever algo e dizer qq coisa, mas são 3 da manhã e ninguém está acordado nas imediações... Aliás, nem sei se concordo com nada do que disse. Mas se for para discutir, vamos fingir q sim... E desde já agradeço a oportunidade de me deixarem escrever forrobó num texto, palavra q surgiu inusitadamente de livre e espontânea vontade, e q me apraz muito utilizá-la num contexto como este, onde paixões, dilemas, segredos e confissões desfilam lado a lado, numa orgia de emoções ilustradora da complexidade maquinal da natureza humana... alguém me cale, q as frases vão ficando cada vez mais longas.... :P