Sunday, April 22, 2007

escrito na areia pela vieira do mar

"Gosto muito da sujidade limpa do campo; de mergulhar as mãos nuas na terra, de deparar com minhocas gordas e de as dar a comer aos sapos e aos peixes do lago. Eu, de cidade há gerações várias, não tenho nojo de minhocas gordas, nem de rãs, nem de cobras. A semana passada apanhámos uma cobra de água; passeou-se pelo meu braço como modelo numa passerelle e, depois, foi à sua vida. Um casal de corujas brancas nidifica todos os anos na chaminé da cozinha e, enquanto faço a sopa ou aqueço o leite, ouço os cicios das crias, assustadas com o barulho das panelas. Nas traseiras da casa existem restos de ratos mortos, de passarinhos recém-nascidos e pernas de coelho meio comidas. Quando não são as corujas, são os gatos; quando não os gatos, os cães. Embora os gatos durmam enroscados nos cães e sonhem os sonhos deles. Mergulho as mãos na terra e tenho sempre a sensação de que algo de muito primordial, de muito primevo, me rodeia as veias, os nervos, como se escutasse os rumores do princípio do mundo. Porque eu sou muito ervas daninhas e orégãos por entre as raízes das oliveiras; sou muito à solta, muito dente-de-leão, fruta trincada na árvore, maçã bichada. Sou pouco, ou quase nada, raíz envasada. Aqui, ninguém tem medo das abelhas que voam à nossa volta: todos sabem que andam ao pólen, é só o que lhes interessa. A relva, na verdade, há muito que morreu: agora é só grama e ervas altas, mas não faz mal: cortado, tudo, com aquela máquina em promoção no AKI, e nem se nota a diferença, parece um campo de futebol. Quando rego, faço-o descalça e metade da água vai para os meus pés, reparam as plantas, invejosas. Aqui, andamos todos descalços, à chuva, sujos e a cheirar a cavalo, embora não tenhamos cavalos. Dos meus filhos, cada um com o seu cheiro próprio. O mais velho cheira a cão, mas isso não é mistério nenhum, pois é num deles que se esfrega o dia todo; se pudessem, dormiam juntos, debaixo dos mesmos lençóis, e contavam-se segredos de namoradas pela noite dentro. O mais pequeno cheira sempre a lareira. Mesmo quando é Primavera, como agora, e a lareira já só fumega lembranças do Natal passado; o cabelo dele é de um fogo esmaecido que lembra pinhas ardidas e resina derretida. Que bem que lhes faz!, apanharem minhocas, enrolarem-se-lhes cobras de água nos tornozelos e agarrarem em gafanhotos verdes para, com eles, pregarem sustos de morte à mãe (pois que tem limites, esta enorme fatia campestre de mim). Tanto que precisam, de andar descalços e ganhar casco, de ajudar a colher o feijão e de comer da boca do cão. Eu cá não deixo (nem pensar!), não, nada de andar à chuva que se constipam, nem de beber da água do poço, muito cuidado com a cobra, que nunca se sabe e nada de comer onde, antes, mordeu o cão e lambeu o gato, porque os micróbios isto e assado. Mas, no fundo, o que faço é olhar para o lado e esperar que lhes bastem as vacinas, que ganhem defesas como soldados experientes e que cresçam fortes e com a natureza dentro deles. Esperar, portanto, que esta sujidade limpa lhes enxagúe os corpos e as almas e lhes dê alento para o regresso à cidade que os espreita, gulosa."
Por vieira do mar, no Controversa Maresia.

No comments: