Friday, February 17, 2006

"equação"

Ele dormia um sono inquieto, entrecortado por roncos, apneias e pontas soltas de pesadelos, pedaços revisitados das memórias tristes dos dias anteriores. Desperta como um animal nocturno, os olhos abertos na escuridão, ela escutava-lhe o ressonar arrítmico, um ruído áspero, consonante com o coração dela, que lhe batia forte à entrada da glote, enquanto pensava que nenhuma melodia lhe soara alguma vez tão bonita como aquele som que lhe vinha do fundo da garganta, a furar-lhes o silêncio, algures entre o ronronar de um felino e um motor engasgado. Olhou-o sem o conseguir ver, distinguiu-lhe os contornos voláteis e os olhos enxaguaram-se-lhe de ternura, uma ternura transbordante, daquelas que chegam de enxurrada, como há muito não sentia, uma quadragésima onda na mudança da maré. Os minutos iam comendo a noite e ela foi-se deixando ficar por ali, ao lado dele, vestida, sentada na cama, a imaginar-lhe as olheiras fundas que a irrequietude seguramente lhe desenharia no rosto de manhã, sem saber se haveria de ficar, de partir, de o deixar ir ou de o expulsar. Foi sentindo a respiração dele a ficar-lhe mais calma, a transformar-se num suspiro regular e longínquo, como o som de um comboio que se afasta na estação antes de ganhar velocidade. Naquela noite, como numa premonição de morte, passou-lhe a vida pela frente; todos os seus fantasmas, dos passados, presentes e futuros, como no conto do Dickens, baloiçaram-lhe junto aos olhos abertos no escuro e ela, como um matemático aplicado, pôs-se a elevar equações à décima potência, desmembrou e separou todos os factores em jogo, identificou as operações a realizar, estabeleceu a ordem das mesmas e convenceu-se de que partia para a resolução do problema. Mágoas com chaveta e sem chaveta, afectos entre parentesis e sem parentesis, menos discussão por menos dá mais, regras de três simples, multiplica por amor e divide por rancor, raizes quadradas de tanto querer esdrúxulo, múltiplos de raiva, fracções compostas por melancolia e tédio, bissectrizes assolapadas de paixão. Definiu-se prioridades primas, dividiu-as por si próprias, traçou-lhes um rumo e um único resultado possível, remeteu as miudezas para o lugar respectivo. Encheu-se de boas intenções, como se enche uma almofada de penas de ganso, e adormeceu por fim com a cabeça cansada pousada nelas, enroscada no suave conforto da sua própria determinação.
Nessa noite, o ronco dele, que tantas vezes a exasperara, irritara e cansara, foi, por uma vez, o som mais bonito que ela já ouvira, um murmúrio de amor resgatado de um fundo lodoso, que a embalaria até muito depois da madrugada chegar e de ele se levantar, fazer a barba, lhe deixar um bilhete junto ao lavatório (no qual lhe assinalava os erros óbvios na resolução da equação que ela formulara noite adentro), pegar na mala feita de véspera e sair baixinho, rodando a chave na fechadura e sustendo-a enquanto fechava a porta, para evitar que esta batesse.

Por: vieira do mar.

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