Sunday, April 03, 2005

«É uma cliente especial»

Para que acabem de uma vez as queixas de que já só quero saber de notícias, aqui fica transcrito (já que a partir de amanhã o nosso caro Público deixa de estar acessível gratuitamente) um texto interessante para desanuviar um pouco.
«A conversa começou com um "Olá, meu amor". Felizmente, não era comigo, sentado no banco de trás, na qualidade de passageiro. O interesse do motorista estava do outro lado da linha. E desde aquela saudação inicial até ao termo da conversa ao telemóvel, o diálogo foi subindo de tom - um tom que eu classificaria, numa perspectiva conservadora, de progressivamente afectivo.
Dentro de um táxi, tanto o motorista como o passageiro podem ser vítimas involuntárias da exiguidade da viatura. Se um fala, o outro ouve. Se um cheira mal, o outro sente. Se um é chato, o outro sofre. Não há escapatória, a não ser que o incomodado fuja, uma alternativa que, por razões operacionais, está mais ao alcance do passageiro. Ao condutor resta sempre a possibilidade de eliminar o cliente. É radical, funciona, mas pode dar problemas.
Neste contexto de partilha territorial, fui compelido a tomar conhecimento de detalhes íntimos da vida do motorista, que não se incomodou em os revelar. Logo o formato da saudação denunciou o que viria. O estereótipo mais radical do taxista de Lisboa toma-o como um sujeito que fala grosso - matéria em que são doutores os da paragem das chegadas no aeroporto, quando vêem que a corrida não é para Cascais, Setúbal, Faro ou Mirandela.
Mas o condutor em questão amoleceu a voz assim que notou, no visor do telemóvel, quem é que o chamava. "Olá, meu amor", disse, em tom cândido. E daí em diante a história do "meu amor" nunca mais parou. "Sim, meu amor", "Estou em Xabregas, meu amor", "Vou terminar nas Olaias, meu amor", "Hoje está a correr mal, meu amor", "E tu, onde é que estás, meu amor?"
Com tanto "meu amor" para cá e "meu amor" para lá, eu já estava a ficar enjoado. Mais do que isso, preocupava-me o excessivo interesse do motorista na conversação e os efeitos que isso poderia ter na trajectória do táxi, em especial em relação aos outros carros. Mas a capacidade de falar ao telemóvel sem perder a atenção ao trânsito deve ser equivalente àquela que os motoristas de táxi têm de, em caso de acidente, não bater com a cabeça no volante - daí estarem isentos do uso do cinto de segurança. Os legisladores são mesmo uns génios, eu jamais teria pensado nisso.
A conversa começou a ficar mais intimista a partir do momento em que ela, julgo eu, quis combinar algo para logo mais à noite. "O que é que faço, hoje, meu amor?", repetiu ele. E, acto contínuo, enunciou uma das mais belas homenagens conjugais desde a última era glacial: "Não posso, meu amor. Tu sabes que eu tenho cão de guarda".
Com o quadro geral traçado, o diálogo foi rapidamente descendo os degraus da intimidade, de modo que eu comecei a reflectir sobre a melhor maneira de me pisgar daquele táxi. A comunicação fazia-se já por mensagens cifradas. Mas numa delas, a chave do código era fácil. "O que é que eu quero?", indagou ele. "Tu sabes bem o que é que eu quero".
A essa altura, eu já estava quase a dizer ao homem: "Ó meu amigo, se você quer tanto, vá lá ter com ela de uma vez; não se incomode comigo, eu saio já aqui e apanho o metro". Pensei também em pular pela janela, atitude que o motorista, absorto no seu tentativo romance, provavelmente não notaria.
Mas a chamada estava chegando ao fim, quiçá frustrada pela difícil conjugação dos desejos do senhor com o cão de guarda que ele tinha em casa. Afinal, ele desligou o telemóvel, olhou para mim através do retrovisor - que é o ângulo social dos taxistas - e rematou, com sorriso maroto: "É uma cliente especial". Imagino.
»
Ricardo Garcia

1 comment:

R. said...

O k ele quer sei eu... mesmo a cromo, no fim da xamada a exibir-se... LOLOLOLOLOL =D