Tuesday, February 08, 2005

Entre Nós e o Sangue

Fim de uma semana de trabalho mais comprida do que o habitual. Antes de desligar o computador e a luz para respirar a folga, uma jornalista marca, de forma quase automática, os números dos telefones da polícia, dos bombeiros, das brigadas de trânsito. Nada de novo? Do outro lado da linha, a simpatia automática e empática com a camada de protecção que ambos deixámos crescer: "Vários acidentes com feridos, mas nada de grave, não há mortos." Boa noite e pronto. Desligar o computador, e deitar uma última olhadela à televisão, onde a guerra enche o ecrã, um ecrã limpo de sangue e cheio de senhores engravatados, que, com uma serenidade impossível, comentam a guerra que acontece muito longe de nós. Um descanso, esta distância.
Desligar a televisão, apagar a luz, respirar a folga no ar frio da noite até entrar no carro, rodar a chave, e sentir a cabeça já muito longe da semana que foi longa de mais, e agora a jornalista sou eu, que fecho a semana com uma condução automática e desatenta, que de repente é alertada por um corpo no chão. Uma travagem brusca. Um corpo no chão. Um carro alguns metros atrás com dois namorados - dois namorados? - abraçados por detrás de um vidro amolgado. Percebo aos poucos que o vidro foi amolgado pelo corpo que está no chão e penso o corpo está morto e lamento não ter um telefone à mão para fazer de conta que nada me toca e perguntar à polícia: o corpo está morto? Pego no telemóvel, marco o 112. Há um corpo no chão. Não, não sei se está morto, normalmente é ao contrário, eu pergunto e vocês respondem e nenhum de nós tem emoção na voz.
Mas não, o corpo não está morto, tem o braço direito numa posição impossível, mas ergue o tronco num olhar vago de sangue em direcção ao carro onde estão dois namorados abraçados, e que afinal não são dois namorados, são um homem em estado de choque e uma mulher que lhe diz que não, que ele não teve culpa, e nenhum deles sai do carro para atender ao corpo no chão. Que falta me faz um bloco de apontamentos, uma caneta, um gravador, sei lá, que se erga entre mim e o corpo no chão. E que falta me faz uma outra língua quando percebo que o corpo é ucraniano e repete sem cessar "police no"; e que falta que me faz a profissão, agora, que não sou jornalista, que sou uma mulher ajoelhada no chão, a beber a terrível solidão de um homem que não é notícia, que está ferido, que não tem amigos ou familiares em Portugal e que só pede "police no". Que falta me faz a televisão, para me distrair deste sangue que aqui está perto e é real e que quase posso tocar. Que falta faz este sangue àqueles senhores engravatados que há bocado falavam num cenário demasiado limpo e por isso podiam opinar, sem emoção, sobre uma guerra que parece ser longe de mais.
Mas não, não há televisão, nem bloco de apontamentos, nem caneta. E eu que a chamei, à polícia, quase peço desculpa a este corpo que me pede "police no". Não estou habituada a esta coisa de acidentes, a não ser que esteja à secretária, a telefonar e a perguntar se há feridos e a pensar que um só ferido não justifica a notícia e por isso se faz favor não se mexa, e digo-o em todas as línguas, e algumas devem ser tão inventadas que ele teima em mexer-se e só repete "police no!" e não percebe que, de cada vez que o diz, se me liberta uma camada de pele, e outra e outra, de tal modo que, quando a ambulância e a polícia chegam, há dois corpos no chão, o meu e o dele, feridos, desprotegidos, perdidos e sós.



Por GRAÇA BARBOSA RIBEIRO
Público - Sábado, 22 de Março de 2003



2 comments:

Alexandre Caetano said...

Realmente é verdade, todos falam da guerra com a calma que não deviam ter. Quanto à distância da guerra, eu cá não me sinto assim tão descansado, digamos que se houve uma guerra assim a nível mundial (pelo mundo inteiro lolol), ninguém se escapa, nem que seja só a nível Macroeconómico.
Agora quanto ao ucrâniano no chão... Eles não são discriminados por todos? Gostava sempre de saber a razão pela qual eles escolhem sempre Portugal e Espanha, como destino principal. Será que as viagens são mais baratas? lol

Susana Nunes said...

Será porque tanto Espanha como Portugal não são tão proteccionistas no que diz respeito à imigração? (não sei se é ou não, atenção) Quanto aos ucranianos (e a todos os imigrantes vindos do leste), é algo que me faz muita confusão. O facto de deixarem as pessoas que amam nos seus países para virem em busca de melhores condições e acabarem a ser explorados miseravelmente, muitas vezes praticamente em regime de escravatura, só revela o tipo de povo que somos, principalmente quando muitos deles têm mais habilitações literárias e são muito mais cultos do que a maioria dos portugueses. Queixamo-nos tanto por causa dos altos níveis de analfabetismo, de "incultura" e de iliteracia existentes no nosso país e, ao mesmo tempo, exploramos e discriminamos quem poderia trazer uma "lufada de ar fresco" a estes níveis. É simplesmente triste.