Thursday, June 01, 2006

«A vida imita a ficção, mas nunca ninguém a processou por plágio»

«O mundo visto do espaço é azul. O mundo visto dos mapas escolares é muito mais colorido. Primeira desilusão: Afinal, os países não eram tão pigmentados como os pintavam, nem Portugal cor-de-rosa, nem Espanha lilás, nem Angola roxa, nem a Alemanha amarela... Segunda: Aquelas linhas que serpenteavam entre eles não serviam para evitar que as cores se esborratassem e se mesclassem umas nas outras. Terceira: Essas linhas chamadas fronteiras são invisíveis fora do papel, e não galgam, como fios de esparguetes infinitos, por montes e vales... Basta um desprevenido passo mais adiante e... muda de nome a terra. Há linhas invisíveis, convenções topográficas, limites, muros de cimento muito altos, divisões intransponíveis, vedações de arame farpado, todos guardados por sentinelas vigilantes, a acautelar invasores, clandestinos e demais intrusos. E apesar de tantas divisões, às vezes damos um passo e lá usurpamos um território alheio – e a terra onde caminhamos muda de nome. Os mundos podem estar separados, mas não são paralelos: interceptam-se. E não há fronteiras mais fustigadas, com intrusões constantes e ocupações abusadoras, como aquelas que separam a ficção da realidade. Mesmo sendo o termo que define um dos mundos a negação do que define o outro. Mas é que são tantas as andanças de trás para diante, a arrepio dos paradoxos, que já era tempo de decretarmos a abolição imediata e com efeitos retroactivos desta fronteira, permitir a livre circulação de direitos, pessoas e bens, extinguir as taxas alfandegárias. Em ambos os sentidos.
E o sentido que parece fazer menos sentido é quando a ficção passa para o outro lado da fronteira e invade a realidade. E se confunde com ela. Na verdade nós até sabemos que há coisas que nunca aconteceram – mas podiam ter acontecido. Ou antes: nós gostávamos mesmo que tivessem acontecido. Por isso vão, ano após ano, excursões de turistas até Verona, visitar a varanda por onde Romeu terá escalado até à Julieta. Ou outros viajantes que andam por esse lugar da Mancha, na senda das pegadas de D. Quixote e seu escudeiro. Ou debitam os guias turísticos que foi na Torre de Pisa que Galileu contrariou Aristóteles, para provar que a massa não influi na velocidade da queda dos corpos, lançando lá de cima uma bala de mosquete e outra de canhão. E a saída airosa de Colombo no banquete em casa do cardeal Mendonza, o célebre expediente do ovo, é afinal atribuída a várias personalidades, entre elas ao arquitecto italiano Brunelleschi. E as monumentais escadarias de Odessa, na Ucrânia, continuam a ser atracção mundial, apesar de aí não ter acontecido nenhum massacre dos populares que apoiavam os marinheiro amotinados, em 1905, e de aí não se ter precipitado o célebre carrinho de bebé do Couraçado Poutemkine, de Sergei Eiseinstein. Aliás, aquelas escadas nem dão para o mar. O clássico Casablanca é menos conhecido pela excelência do filme (que nem é assim tanta) do que pela banda sonora, pelo casal Bogart&Bergman e por uma frase que nunca é pronunciada: «Play it again, Sam!». E aqui já temos a ficção que dentro da ficção se torna realidade. Confuso? Num filme que tem como título esta deixa que nunca existiu, Woody Allen convoca Humphrey Bogart para fazer de uma espécie de grilo do Pinóquio da consciência das personagens. Mas é em Maridos e Mulheres que o realizador condensa toda esta invasão da realidade pela ficção: «A vida não imita a arte. A vida imita os maus programas de televisão»...
(...)»

Por: Ana Margarida de Carvalho,
Visão Online

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